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A bolha

Tenho um amigo há uns 30 anos que, ao retornamos de algum passeio, quando ingressamos no bairro onde eu moro, ele sempre afirma que entramos em uma bolha. Ressalta algumas particularidades da vizinhança, tais como pessoas assentadas à porta de casa e proseando, crianças brincando no meio da rua, entre outras coisas.

Bem sei que não é todo e qualquer lugar em Belo Horizonte em que ainda se tem o privilégio de sair no portão de casa e ver um grupo de crianças deitado de costas no meio da rua, conversando e rindo. De repente, todos se levantam e caminham tranquilamente como se estivessem naquelas ruas sem calçamento do tempo em que eu ainda era criança, aqui mesmo, em BH.

Enfim, a fala dele sempre me levou a pensar no privilégio que é ainda termos esse tipo de lugar em uma metrópole e na sorte que eu tenho de morar nesta casa, de onde escrevo agora este texto, residência esta que “viu” passarem algumas gerações, como eu já expressei anteriormente neste mesmo espaço.

Cada vez que eu preciso de um sapateiro, sei bem onde tem um, conheço a história dele, além de seu nome, claro. Sei também onde tem aviamentos para qualquer emergência em uma peça de roupa, ainda que seja final de semana. Claro que os jovens de hoje podem não ter ouvido falar nesses tais “aviamentos”, mas já vou logo esclarecendo que são voltados às pessoas que, iguais a mim, se dedicam a fazer costuras, mesmo que domésticas, e sem compromisso com a moda ou com a sofisticação. Isso mesmo: aviamentos servem para quem tem que colocar um elástico, pregar um botão, trocar um zíper, remendar um lençol de que gosta muito e dele não quer se desfazer etc. Não bastasse, para as costuras manuais eu não abro mão do tradicional e antiquíssimo dedal. Aprendi a usá-lo com a minha avó materna, já que minha mãe detestava o artefato protetor de dedos mais delicados, como eram os meus quando criança, época em que comecei a me aventurar nessa seara. Todavia, continuo a usá-lo, já que o encontro na lojinha, aqui, da bolha.

Quando da reforma que realizei há quase dois anos, após a finalização da locação das caçambas, sobraram ainda alguns itens para descarte, bem como os decorrentes da limpeza da horta e do jardim. Não eram compatíveis com o volume comportado por uma caçamba, mas couberam perfeitamente em uma carroça, cujo carroceiro tem um nome italiano, é parecido com um e me surpreendeu com a informação de que eu poderia pagá-lo com PIX. São as modernidades se intrometendo na bolha.

Todavia, como se trata de uma bolha “raiz”, durante essa mesma reforma daqui de casa, o responsável por ela (Deus o tenha!) comunicou a mim seu interesse em ter autonomia junto ao depósito de materiais para construção. Isso se deu com a nossa ida juntos ao depósito, que leva o nome da rua do endereçamento (outra particularidade da bolha!), tendo o filho do dono (tradição familiar no comércio também é uma característica no bairro onde moro), cujo nome é o mesmo do pai, com a diferença de alguns fregueses mais antigos colocarem o nome dele no diminutivo para diferenciá-lo do pai e, também, por conhecerem-no desde menino, atendido prontamente aos nossos interesses, deixando aberta uma caderneta (isso mesmo! Compra para ser paga posteriormente, com anotação no caderninho do proprietário do estabelecimento, e a entrega da notinha comprobatória da aquisição geradora do débito) em meu nome e, igualmente, em nome do responsável pela reforma daquele ano. Eu ia lá de vez em quando para acertar o valor das compras do período. Coisa pouco compreensível para quem não é da minha época, creio.

Essa minha bolha é tão especial que ela consegue me trazer a infância de forma viva e irrefutável, como se deu na tarde desta terça-feira. Eu comecei a acompanhar a novela da tarde em determinado canal, sobretudo por se tratar de um épico bíblico; estava eu tranquilamente assistindo a um capítulo em que um gigante tentava provar sua bondade ao povo amedrontado que o aprisionara, quando meus ouvidos captaram o som de uma matraca.

Talvez os mais jovens também desconheçam essa palavra. Mas, de forma bem simples, vou explicar que é, na maioria das vezes, um artefato construído artesanalmente com um pedaço de madeira e uma estrutura metálica que possa ser sobre ela balançada gerando um som bem particular. Tão logo então eu ouvi o som dessa matraca eu meio que duvidei que pudesse ser o que eu suspeitei que fosse: biju. Imediatamente eu saltei do sofá onde estava aboletada, abri a porta da sala – que estava fechada para a gata que fica na varanda não entrar e querer desfrutar do sofá e dos arranhões que este pode lhe proporcionar – e fui conferir se era aquilo de que minhas memórias se lembravam.

Ao chegar à grade eu o vi; ele já começava a descida da rua; levava dependurado no ombro direito uma alça larga, que sustentava um recipiente bem grande, plástico, de forma cilíndrica, azul claro. Na mão esquerda, seguia batendo a matraca. Foi ver que se tratava de um senhor com idade por volta dos 70 anos, bem branco, pele avermelhada, fazendo-me lembrar do meu tio, que residiu por uns 50 anos na mesma casa onde eu vivo hoje, para ter certeza de que o conteúdo daquele vasilhame plástico grande só podia ser o biju.

Há anos eu não via ou comia o biju de minha infância. Assim que eu gritei a palavra “Biju?!”, o senhor parou a descida, olhou para mim na varanda, respondeu-me que “Sim.” e veio caminhando em direção ao passeio, tendo ficado à minha disposição em frente ao portão daqui de casa. Perguntei quanto era e ele me disse sorrindo sob o chapéu, que em vão tentava proteger sua pele muito clara: “R$5,00”. Eu pedi que ele esperasse e entrei rapidamente em casa, torcendo para ter esse valor pelo menos em moedinhas.

Mas eu não precisei me preocupar por muitos segundos, pois meu cérebro rapidamente me lembrou dos vinte reais junto com a notinha do sapateiro, referentes ao pagamento do conserto de um par de botas, as quais eu buscaria naquela mesma tarde. Não titubeei: peguei dentro da carteira e no meio da notinha dobrada, dez reais e saí com eles na mão, direto até o portão da rua.

Ali chegando, falei sorridente que queria dois pacotes. O vendedor de biju ficou ainda mais feliz, informando-me que, vendidos aqueles dois para mim, restavam apenas outros dois para terminar as vendas daquele dia. Agradeci, desejei boa sorte a ele e entrei o mais rápido que pude para desfrutar imediatamente de todo aquele biju.

Assim que cheguei à copa, abri o primeiro pacote, tentando conciliar as imagens da novela, que já haviam evoluído do gigante para uma intriga entre reis e disputa de poder, com o meu toque no cilindro crocante do biju, cuja extremidade coloquei suavemente na boca e pude apreciar uma vez mais o sabor incomparável e que me trouxe a infância para dentro do cômodo e a voz da minha mãe falando: “Pega as moedinhas para o biju! Anda rápido antes que ele alcance a rua de baixo!”.

Claro que eu não me lembro se o preço era barato ou caro; só sei que minha mãe também era encantada com o sabor desse tipo de biscoito que, em sua simplicidade e leveza me conquistou o paladar desde aquela época, contrariamente ao algodão doce, que nunca me agradou e eu jamais o consumia, mesmo se alguém quisesse comprar um para mim; eu sempre optava por trocá-lo pela maria-mole.

Mas o mais engraçado nesta tarde de terça-feira não foi apenas o prazer de relembrar os tempos pretéritos, o sabor que já estava meio perdido nos longos anos que nos separavam; foi, também, poder consumir de uma só vez, os dois pacotes de biju, sem ter que repartir com ninguém. Foi, na verdade, a primeira vez em que pude realizar esse antigo desejo. Que a “minha” bolha continue assim tão particular e me surpreendendo com pequenos (grandes) prazeres de aqui viver!

MoBa NePe Zinid – 07 mar. 2024.