A rua onde moro
Domingo de manhã, bem cedinho, gosto de ver a rua onde moro (ou como eu e muitas pessoas dizemos: “a minha rua” ou “a nossa rua” se estamos conversando com alguém da mesma rua) vazia de carros estacionados ao longo do meio-fio, seja na mão direcional ou na contramão; de gente, pois é dia de descanso, de aproveitar a cama um bocadinho mais; de cães e gatos, sejam os abandonados, os de rua, sejam os que se encontram sob tutela.
Os animais nesse dia costumam acompanhar o ritmo mais lento de tudo e de todos. Casas ainda adormecidas os levam a uma dormência natural ou induzida, por vezes, pela fome – se abandonados – ou pelo excesso de comida, se tratados com uma despreocupação pela gordura que lhes fará igualmente mal.
Esse dia de silêncio é cortado cedinho apenas pelo grito das maritacas que não veem relógio, mas têm o biológico e veem as árvores frutíferas promissoras que as alimentam sem cobrar nada por isso. Ou, à medida que a manhã vai avançando, pelo movimento de pessoas, que se desenvolve com propósitos bem definidos: ir à missa, à padaria, à farmácia, realizar a Campanha do Quilo…
A presença dos voluntários coletores da Campanha do Quilo é por mim associada à música que diz: “Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas, nas mãos que sabem ser generosas!”. Isso porque não apenas a “minha rua”, mas várias outras no bairro têm nome de flores. O nome da rua onde moro é de uma flor pouco conhecida, de cinco pétalas, lilás ou roxa.
A ausência de carros e de motocicletas, principalmente as que vêm realizar delivery, gera uma paz que se explica pelo contraste com os demais dias da semana e pelo psicológico das pessoas que percebem instintivamente que o domingo é um dia para se desfrutar da paz que o espaço urbano oferece: sentir o cheiro das flores, ouvir os pássaros cantarem, “jogar conversa fora”!…
A saída de casa num dia desses mostra aspectos inobservados nos dias de agitação. Percebo, desde o ponto mais baixo da rua, de lá de onde ela começa, como ela é íngreme e solene simultaneamente! Como a “minha rua” se impõe neste bairro ainda bastante residencial, apesar da inserção gradual de empresas, das lojinhas típicas, dos bares e restaurantes, que proliferam destacando a prosperidade dos seus administradores, gerando a mudança dos ares do lugar onde moro…
Outra mudança na “minha rua” que acompanho é devido à proximidade com o cemitério mais antigo da cidade; ela vem recebendo no seu ponto mais alto, junto ao cruzamento com via movimentada e perpendicular, por onde circulam ônibus que servem ao bairro, despachos típicos, com velas parafinadas vermelhas e tradicionais, brancas e em formato de chave, frango morto, farofa, pipoca etc.
Interessante que, seguindo um pouco mais adiante ainda na “minha rua”, é possível ler a placa “Rua sem saída”, informação essa que se presta aos motoristas em seus respectivos veículos, mas não aos transeuntes e tampouco aos motociclistas.
Quando retorno da curta caminhada matutina dominical, os cães já começaram a ladrar, as campainhas para a coleta de alimentos não perecíveis já estão tocando de forma a despertar os que ainda insistem na preguiça de sair da cama. É o momento em que sinto de forma mais consistente a subida do morro, chegando ao portão de casa “botando a alma pela boca”, como costumava dizer minha mãe!
Aviso aos simpáticos coletores da Campanha do Quilo que volto num instante com minha contribuição e, de fato, o faço, pois já tenho reservado os itens para esse objetivo. Depois que recebo o panfletinho com a singela mensagem que sempre me diz algo de relevância ao cotidiano, começo a refletir como é bom termos vínculos afetivos com o espaço no qual residimos! Lembro-me com carinho do “Bom dia, vizinha!” que recebo quando passo em frente à casa de minha vizinha de baixo ou de cima. Ambas residem há muitos anos nesses imóveis que, assim como o meu, passaram por reformas e melhorias diversas e, com isso, iguais a mim, elas também contribuem para adornamos, juntas, “a nossa rua”.
Ainda no decorrer da manhã, sentada na varanda – bastante aprazível agora, finda a quarta reforma da casa –, logo depois que o sol muda de posição e não mais incide no banco, ali leio um livro de que esteja desfrutando naquele período. É tempo suficiente para ver também quem passa e ouvir um cumprimento de uma simpática vizinha que é bastante gentil comigo quanto àquilo que visto e ao meu aspecto geral, dizendo sempre que pareço uma “bonequinha”, elogio esse que me era frequente apenas na infância, mas mesmo assim, sinto-me alegre pela alegria com a qual ela diz essas amáveis palavras.
É essa “nossa rua”, dela, das demais pessoas, nela residentes ou circulantes e, igualmente, minha, que já viu ambulância levando mãe que não mais voltou; carro saindo apressado da garagem, motorista com máscara, para atender notícia de morte por Covid em hospital da capital; carro de aplicativo deixando noiva ainda paramentada, acompanhada do marido, ambos já de aliança nos anulares da mão esquerda e entrando em minha residência resplandecentes de alegria pela formação de uma nova família; carro de aplicativo também, no dia seguinte, vindo buscar o vestido de noiva que, desacompanhado, seguiu para seu destino, depois de receber um calor exclusivo e inigualável…
Mas nem só de imagens e notícias agradáveis “vive minha rua”! Ela também se tornou palco da ação de alguém desprezível que invadiu sorrateiramente a moradia de uma vizinha e levou sua televisão. Pouco depois, mudaram a fachada dessa casa, agora gradeada para impedir o ingresso de estranhos com suas ações nefandas! Outros, quebraram vidro de veículo estacionado defronte uma residência desprovida de garagem, levando conteúdo de relevância ao seu proprietário, pois lhe subtraíram uma caixa de ferramentas.
É ainda essa mesma rua que me vê passar todos os dias e permite que meus pés me levem aonde eu queira ir; é ela que me recebe com suas pedras pontudas em alguns pontos menos atritados pela constância dos veículos que por ela também circulam e, noutros, mais arrendondadas pela ação de muitos a desbastarem-nas ao longo dos anos desde sua pavimentação.
Como escreveu dia desses minha irmã que mora longe, mas está sempre aqui comigo, em meu coração: “Se essa rua fosse minha…”. Bem, como a rua onde eu moro, é minha, eu acabei de colocar pedrinhas de brilhante para o meu amor passar!
MoBa NePe Zinid – 04 abril 2025
Minha querida irmã, se essa rua falasse contaria muito mais estórias! Minha infância e adolescência, quando não imaginava que tinha uma família (biológica) em frente à minha tia-avó (adotiva). Como a vida é um círculo, ao visitá-la pude sentir tudo isso que você descreveu nesse artigo lindo. A casa passa uma paz de interior na cidade grande! Como a vida é interessante! 🤔
Minha irmã,
como é bom saber que, com poucas palavras, pude transportá-la a lugares interiores!
E como é gratificante também ter a informação de que minha casa é significativa para
você!
Venha sempre que puder! Afinal, a vida pode trazê-la novamente para o Brasil, não é mesmo?
Envio-lhe e à sobrinha querida excelentes energias!