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A solidão mete medo?

Só, quando a noite chega, começo a mentalizar no bem e em coisas maravilhosas acontecendo comigo. Uma boa ducha, um jantar gostoso e a cama quentinha, com o sono sendo conciliado assim que eu me deito. Mas tão logo penso todas essas coisas boas, eu me lembro daquelas pessoas que não têm onde tomar banho, não têm um jantar gostoso e nem sabem o que é uma cama há anos, que dirá uma “quentinha”…

Um pensamento triste atrai pensamentos outros que vão se misturando e, de repente, uma preocupação me invade: e se alguém resolver entrar no quintal da minha casa? Eu deixei a porta dos fundos aberta? Vou verificar. Está trancada! Ufa!…

Mas e se a pessoa vier pela frente? Tenho quinze gatos no caminho agora à noite e eles podem ser um obstáculo. Ou não? Não!… O mais bravo deles é Feliz que, depois de recuperado da inserção de uma sonda esofágica e do prolongado tratamento, tem distribuído patas na cara de todos os amigos e nem tão amigos assim… Mas mesmo ele sabe buscar carinho e se esfrega nas pernas da gente. Outro deles, o Treze, periga ser até pisado por algum meliante, de tão tranquilo que é…

Um temor começa a invadir minh’alma. Uma insegurança. Um desejo de que meu marido estivesse aqui comigo logo ao cair da noite. Talvez ele esteja. Mas nem mesmo esse pensamento me acalma. Começo a vislumbrar cenas surreais: o meliante consegue entrar e depara comigo defronte a uma tigela cheia de canjica quentinha. Ele aponta uma arma de fogo na minha direção. Estou calma. Dialogo com ele. Conheço a índole dele, sei que tem um desespero e uma sensação de abandono social enorme e quer acertar as suas contas seja lá com quem for…

Penso na mesma coisa: acertar as minhas contas. Porém, é em Deus que penso nessa minha situação que é um misto de terror e da certeza de que a morte se avizinha. Aliás, essa palavra me faz vir à mente a proximidade das minhas duas vizinhas. Será que grito por uma delas? Ou por ambas? Elas me escutariam? Viriam em meu socorro? Na dúvida, silencio o momento crítico e penso novamente em Deus. Será que tenho passaporte para entrar no reino do céu? Será que fiz o trabalho final direitinho? Eu morrendo, a nota nem chegarei a saber…

Um tumulto e uma incoerência de pensamentos assaltam meu cérebro. Continuo olhando o invasor, a arma e a expressão de medo nos olhos dele bate com a minha e a nossa incredulidade diante da situação é enorme. Não sei como nem o porquê, mas ofereço canjica para ele. Mostro a panela ainda pela metade, um pouco do vapor já se esvaindo. Digo que vou me levantar e pegar uma tigela e colher para servi-lo.

Vejo dúvida em seu olhar. Mas aceita, ao abaixar a arma e puxar uma cadeira junto à mesa e se assentar. Sirvo apenas duas conchas cheias. Vamos que o tempero não o agrade e ele se irrite comigo e diga que nem pra fazer uma canjica eu presto mais, que dirá para servi-lo.

Entendo nessa hora que ele não quer dinheiro ou joias, mas meu corpo velho e cansado, que não está mais aqui para servi-lo ou a qualquer outra pessoa.

Em meus devaneios, enquanto o vejo mastigando com a boca aberta e se servindo de mais canjica, penso que é o meu marido que está de volta, mas ao mesmo tempo duvido: ele não mastigaria assim e jamais usaria de violência comigo. Ouço um barulho e tenho novo sobressalto. É no quintal. Será o comparsa do comilão que ainda não entrou, mas está prestes a fazê-lo?

Esboço um gesto de quem vai se levantar da mesa de refeição, mas a mão que antes empunhava a arma segura firmemente o meu punho e me força a retomar o assento da cadeira. Fico ainda mais amedrontada, acreditando que agora ele termina de comer a guloseima e me ataca!

Um tremor me faz sacudir sutilmente o corpo; um vento frio de noite julina entrando pela janela e eu me dou conta de que havia cochilado sobre a mesa. Cansaço. Tudo um mero sonho. A solidão me atemorizando nos meus devaneios e invadindo o meu espaço privado. Fico com uma leve sensação de desconforto. Olho o meu punho ainda avermelhado pela posição que a cabeça debruçada sobre ele marcou.

Finalmente, eu me levanto da mesa. Olho o relógio mais próximo, defronte a mim. Ele é um relógio diferente; parece que começou a derreter com o calor. Não consigo entender bem as horas nele; estou sem os óculos. Ouvidos bem atentos, ouço, agora, de fato, um barulho no quintal. Não tenho como acender a luz lá de fora sem sair. Deveria ter previsto isso na reforma, mas não atinei com a praticidade da coisa. Terei que abrir a porta dos fundos, girar a mão para a direita e tocar no interruptor, rezando para nada tocar o meu punho, pulso já acelerado.

Acendo a luz bem a tempo de ver Feliz, meu gato negro andando numa prateleira de vidro, em meio à minha coleção de elefantes, que fica bem lá no alto; mas muito lá no alto. Não sei se grito ou se rezo para ele descer sem quebrar nenhum dos enfeites ou se agradeço a Deus por ser apenas uma arte do mais arteiro dos meus felinos. A solidão não mais me mete medo!

MoBa Nepe Zinid – 14jul2022