(No) quintal
Quem me conhece sabe que eu moro numa casa velha, a qual venho sistematicamente reformando. Um pouco de cada vez, porque se tem algo que sai caro é a tal da reforma. Mas neste texto eu não quero falar mais uma vez de reforma; quero falar do quintal que tem aqui nesta minha casa velha.
Quando estou no quintal – que fica nos fundos, já que na frente é o jardim –, normalmente, não estou à toa. Estou cuidando das plantas ou dos gatos, lendo ou varrendo. Ai! Varrer as folhas das árvores quando está ventando é uma arte! Além de eu me lembrar de minha mãe e do arsenal de palavrões que ela dizia quando o vento esparramava as folhas que ela havia varrido e ajuntado em um montinho bem arrumadinho para recolher com a pazinha e colocar na lixeira, eu fico pensando na perfeição da natureza, que é saber direitinho quando é a hora exata de uma folha se desprender do galho e, pela ação da gravidade, parar no chão do quintal. Sob a folha, algumas vezes, uma formiguinha; ou um pouco de cocô de passarinho; ou uma terrinha que caiu do xaxim de coco onde tenho as orquídeas, encarapitadas no pé de louro; ou uma semente esmagada por meu pé desavisado da presença de uma fruta que caiu antes daquela folha…
Gosto de passar a vassoura feita com a reutilização de garrafa pet, cortada em tirinhas, as quais são moldadas de tal forma a possibilitarem uma formação semelhante àquela das vassouras tradicionais, porém menos triangular; elas são mais retangulares e têm uma leveza que nos impulsiona a expandir a área percorrida pelas cerdas plásticas, levando as frutas menos grudadas no piso a rolarem um pouco mais para longe, por vezes, ultrapassando a área onde a maior porção do lixo do quintal já se mostra amontoada, fazendo-me retornar a um ponto limpo anteriormente, para desta vez imprimir menos força no ato de juntar a frutinha perdida e fujona.
Deslocar a mangueira para regar a horta é a arte de arrastar 30 metros de uma borracha grossa e pesada, mas é algo facilitado pelo fato de estar o artefato sempre estendido e desenrolado, às laterais do corredor, pronta para jorrar a água, seja em esguichos ou em jatos. Qualquer que seja a forma, é gataiada correndo pra todo lado, assim que escutam apenas o ruído do arrastar da mangueira. Eita bicho esperto e medroso de receber mesmo que seja um esguicho fininho que advém da pequena rachadura causada mais ou menos ali pela metade da mangueira, por ocasião de uma das mais longas reformas pelas quais a casa já passou (aliás, voltou a passar! Rs.).
É neste quintal que ouço a algazarra das maritacas que vêm atraídas seja pelas goiabas amarelas quando amadurecem e se destacam provavelmente na linha de visão delas, seja pelas jabuticabas madurinhas e brilhando sua casquinha fina e pretinha nas grimpas dos galhos fininhos e balançantes. Elas não comem as frutas em silêncio; ficam cochichando entre elas, jogando cascas e sementes no piso que, normalmente, acabei de varrer. E basta eu botar os pés no quintal para elas já começarem a alardear a minha presença. Tão logo eu me torno totalmente visível para elas, é debandada em grande gritaria. Eu adoro vê-las fugindo de mim e me provando que jamais vou conseguir vê-las e contar o número exato delas antes de saírem em seus voos livres!
Também aqui, neste quintal, que posso dizer que é ancestral, igualmente se deleitaram minha avó materna, minha mãe, meu tio e outros parentes mais, em suas visitas (in)constantes, e muitas conversas foram cochichadas, não com a comilança das maritacas, mas certamente também regadas por uma boa e cheirosa comida caseira, normalmente, à moda portuguesa; outras vezes, foram gritadas, como na debandada dessas aves. E por qual motivo? Não importa; o que sei é que a vida pulsa e expulsa os fantasmas que aqui habita(ra)m harmonicamente.
Os animais que por este quintal circulam, buscam se saciar; sejam os domésticos por minha opção, sejam os de rua por minha aquiescência ou mesmo as aves com a sua liberdade de estarem onde se sentem bem ou pelos alimentos que as atraem ou os micos: todos alegram e enchem de vida o quadradinho arborizado e escondido de olhos mais curiosos.
Ler sob a pitangueira é garantia de uma frutinha caindo sobre a mesa e, se meu cuidado não for redobrado, pode até ser atingida uma página do livro, que será tingida de um tom entre o vermelho e o vinho, com um caldinho que sei ser adocicado. As folhinhas caem numa lentidão indolente e indefinida quanto ao ponto de repouso final. Gosto de acompanhar a queda delas, imaginando-me filmando e colocando em câmera lenta ou apressada, como naqueles documentários que aparecem em certos canais que divulgam sobremaneira a natureza, seja a selvagem ou não.
Gosto de me sentir como a “última das moicanas” a ter um quintal no meu quarteirão. Felizmente, no meu bairro (lembrados da “bolha”?) ainda existem casas iguais à minha, antigas e detentoras de um quintal com árvores frutíferas, uma hortinha e, portanto, responsáveis pelo oxigênio que boa parte dos vizinhos pode respirar e com uma melhor qualidade. É engraçado como as pessoas, que têm menos idade que eu, costumam não valorizar essa opção de moradia: uma casa mais antiga, com um quintal nos fundos e um jardim na frente. Normalmente, logo perguntam: “Tem piscina?”. Resposta: “Não!”. Ou, então: “Tem vaga para dois carros na garagem?”. “Também não!”. Enfim, minha casa velha tem aquilo que agrada às lembranças que trago de minha infância e, igualmente, de minha adolescência.
Neste mês de maio, em que comemoramos o “Dia das Mães”, ouso fazer uma comparação do meu quintal com colo de mãe: me aquece quando estou com frio, me refresca quando estou com calor; me dá sombra, me dá abrigo; me faz companhia e me dá o alimento de que preciso; a companhia vem das árvores e o alimento é o fruto que elas dão. Meu quintal é um regaço no qual posso deitar minha cabeça e sentir o perfume das flores, perceber a pureza da natureza, e a força de Deus!
MoBa NePe – 16 maio 2024
Ah, que coisa mais gostosa de ler! Texto tão bom quanto o seu quintal!
Oba, Liliane!
Que bom que gostou!
Precisamos revitalizar o uso desse quintal com os amigos que têm criança!!
Obrigada pelo carinho de estar presente aqui uma vez mais!
Me senti representado pelas palavras e pelas emoções que fluem da leitura. Obrigado querida Monica (que assinava MOP e hoje subscreve Moba) …rsrsrs
Oi Anderson,
que alegria saber que o emocionei com minhas palavras soltas ao vento, esparramando letras…
Sim, a MOP é a MoBa, por força das circunstâncias. Rs.
Obrigada pelo carinho de vir dialogar comigo e com os demais leitores.
Beijo nas mulheres da sua vida: suas 3 lindíssimas filhas!