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Os segredos que as casas contam

Cedo, tão logo desperto, saio do quarto, porque a fome incomoda, e vou para a cozinha para preparar o café da manhã. O café quente dentro da garrafa térmica – que tem mais de 15 anos –, quando ela é fechada, solta um chiado como a dizer: “Quenteee!…”. Parece um zumbido de inseto, mesmo sem sê-lo. É, também, a forma de saber ao certo que o café está mesmo recém-preparado, quando foi a faxineira quem o fez assim que chegou à casa. E o cheirinho que percorre os cômodos? Mesmo antes de eu sair do quarto, nos dias em que ela vem, passa pelas frestas da porta e vai até a mim, puxar-me das cobertas, atiçando-me a tomar um banho rápido e me juntar a ela à mesa do café da manhã. O chá já é bem mais discreto! Só dá sinais de sua presença se eu já estou a observá-lo. Tímido, eu diria…

Zumbindo feito mil grilinhos, o repetidor dentro da casa avisa que a internet está presente. O trabalho não ficará esperando interminavelmente.

E se o dia transcorre como o café fresco e contador de histórias, muito quente, ao iniciar a noite, baixando um pouco a temperatura, os móveis da sala – onde há maior incidência do sol ao longo do dia – começam a estalar como se fossem ossos. São as madeiras contando as mazelas pelas quais passaram até chegarem aonde estão.

As janelas da casa ainda são as da construção dela nos anos 70. Já afrouxaram a estrutura corrediça e, se não ponho um calço para não baterem quando venta um pouco mais forte, são elas que revelam as aberturas e fechamentos para o “ver quem passa” e para o deixar a luz do dia e a luz da lua entrarem sem medida no aconchego do lar.

As dobradiças das portas e dos portões sempre sequiosos de grafite para não reclamarem com guinchos renitentes e desconfortáveis dos maus tratos quando há alguma lufada mais forte de vento ou, então, quando os antigos moradores discutiam e saíam batendo-as(os) fortemente para demonstrarem a sua raiva do outro, como se a voz da batida pudesse calar mais fundo no coração alheio que as palavras ditas intempestivamente.

E o que falar da campainha? Parece sinal de escola do século passado, somado à gritaria da hora do recreio. Dependendo do amigo que a toca, sei direitinho quem é. Dependura no toque e o faz como marca registrada. Ou, então, sou eu mesma, com vários e entrecortados gritos da campainha, para alertar à faxineira que cheguei com as compras e estou demandando a ajuda dela. E a comunicação se faz por esses barulhos que são como sinais da própria casa.

No apartamento onde vivi por 17 anos, os quartos tinham o piso revestido de madeira que, infelizmente, não estalava como aquelas que fazem parte dos casarões de Ouro Preto, visitados por mim e dois amigos africanos (um beninense e um ganense) em novembro de 2019. Gosto de imaginar muitos dos nossos ancestrais resmungando suas reclamações porque não estamos usando o espaço, que ainda é deles, de forma adequada.

Quem me conhece e costuma frequentar a minha aprazível morada, uma casa velha que vem passando por inúmeras reformas, pode ter a mesma visão que eu ao descascar uma parede e ter a revelação das cores subjacentes… Quebrar pisos e exibir o que houve ali debaixo um dia, não se sabe quando… E o que dizer de uma demolição de parte ou do todo? Logo a terra que sustentava a edificação faz aflorar uma diversidade vegetal… Uma verdadeira inspiração!

E, como agora tenho o fogão a lenha dos meus sonhos – um autêntico fogão caipira –, não posso me esquecer do estalar da madeira, crepitando a alegria dos cheiros e sabores a serem experienciados… Depois do desfrute das refeições, as vasilhas empilhadas na pia (enquanto o som de um leve piano vem de um aparelho qualquer, desenhando o descanso) vão se acomodando e fazendo os seus ruídos de estômago cheio e satisfeito; sinal de fartura na casa. A panela de pressão que ficou na trempe ainda quente, vai suspirando porque também está saciada: da minha alegria com a canjica calorosa e gostosa, que veio a título de sobremesa junina nesses dias mais friozinhos…

Cotidianamente, geladeira e freezer soltam os seus arroubos de eletrodomésticos pedindo substituição; já não são mais aqueles aparelhos novinhos e silenciosos. Reclamam a aposentadoria que não fazem ideia se terão algum dia na atual conjuntura: reforma depois de reforma!… Aliás, melhor que não silenciem de forma alguma! Deixarão de ser úteis; estarão mortos, acabados.

Enquanto isso, os vidros que acabaram de ser instalados na varanda, são atritados pelas mãos ágeis da faxineira e dão gritinhos de contentamento, como se estivessem tendo muitas cócegas e dissessem: “Vi, não vi. Ri, não ri.”. Permitem ver quase tudo que se passa do outro lado; são transparentes como as minhas vontades de atravessar o quintal sem tocar uma lagarta que parece brotar da folha de uma palmeira. No descuido com as folhas do piso, piso-as sem compaixão e elas farfalham, gemendo o meu descaso. Meus ancestrais já fizeram (quase) tudo isso que eu faço nesta casa velha, mas que ela conta muito mais segredos para mim, lá isso conta!

MoBa NePe Zinid – 10jun2022