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Trinta e cinco anos depois…

É dia 12 de janeiro de 1989. Saio para o plantão que, à época, era de 24 horas. Sempre atenta aos chamados, as horas vão passando. Anoitece. Recebo uma ligação transferida pela portaria. É do meu companheiro, que me convida para jantar. Daí a pouco ele chega em sua motocicleta Honda 750. Subo nela e vamos jantar num dos restaurantes no entorno à Praça Raul Soares.

Jantamos. Ele me oferece um martíni seco com a cereja no fundo da taça. Eu gostava dessa bebida e, embora estivesse de plantão, aceito e bebo. Terminado o encontro, ele me deixa em meu local de trabalho, despede-se de mim com um beijo e se vai.

Dia 13, às doze horas em ponto eu pego minhas coisas que havia levado para o plantão, ponho em minha mochila, deixo o serviço e vou para o ponto de ônibus na Praça da Liberdade. Eu não tinha carro. Desço do ônibus no bairro onde morava e caminho alguns quarteirões até chegar em casa, cansada, com sono e com fome. A esperança é de que meu companheiro – devido ao horário – já tenha feito o almoço para nós.

É uma casa de esquina. Abro o portão. Entro. Subo as escadas. Chego à varanda. Destranco a porta. Abro e deixo a mochila cair no chão! Não tem nenhum mobiliário no cômodo… Nem os quadros na parede! Coração acelera. Penso em Deus! Penso no meu companheiro: será que ele está bem? Vejo um bilhete no prego na parede onde outrora ficava um quadro cuja paisagem não é mais parte de minhas lembranças.

Em passos inseguros caminho até o ponto na parede em que o papel se destaca. Puxo, rasgando a parte superior. Começo a ler com tremores nas mãos. Medo do conteúdo que pode ser fatal. Ou, minimamente, um divisor de águas, como de fato o foi. Leio. Releio. Começo a chorar. Não tem lugar para eu me sentar naquele cômodo vazio, como meu cérebro naquele momento. Não consigo concatenar as ideias. Começo a me deslocar para o cômodo ao lado: sala de televisão. Vazio. Caminho em direção à cozinha. Vazia. Copa: idem. Desço as escadas em direção aos quartos que ficam sobre a garagem da casa. Ali está a cama de casal, forrada como eu a deixara no dia anterior. Nela eu me sento e começo a soluçar. Leio uma vez mais o bilhete que meu ex-companheiro havia me deixado.

“Não fique com raiva de mim!”.

Os primeiros 35 dias foram os mais penosos daquele ano. Minha mãe me ajudou e me amparou muito nesse período. Mas as lembranças são algo impressionante. Elas são intensas como a paixão no início, mas vão se suavizando ao longo dos anos, tornando-se com o passar de muito tempo, algo próximo à amizade na maturidade: tranquilas e profundas. Trinta e cinco anos são passados…

Não, eu não tenho raiva de ninguém! Eu sinto que os percalços são algo imprescindível em nossa vida e nos impulsionam a buscar uma história nova e diferente, a qual nos faça sermos os protagonistas de algo de que tenhamos orgulho. Eu sei que passei por maus bocados, mas quem nunca? Sei que durante um tempo razoável eu perdi a confiança no ser humano, mas felizmente, eu a recuperei e, mesmo que eu passe novamente por tudo isso, ou seja, tenha que recomeçar a minha vida com a minha cama, minha roupa do corpo e meus livros, sei que Deus não me desamparará. Sei que a minha força é interior; ela independe do que eu tenho em termos de materialidade.

É impressionante como podemos transitar nos fatos que nos sucedem. Naquele 13 de janeiro de 1989 eu era uma pessoa com total desilusão e incredulidade em face da vida e do outro. Entretanto, trinta e cinco anos transcorreram e hoje, com as bênçãos de Deus, sou uma pessoa que acredita em si e no outro. Que sabe se reinventar. Que tem a fé multiplicada por mil. Sou alguém que busca ajudar mais que ser ajudada. Uma pessoa que se preocupa com o próximo e com os animais. Sobretudo, alguém que não titubearia em estender a mão para auxiliar àquele que me apunhalou pelas costas, abandonando tudo que havíamos construído em um ano de relacionamento, exatamente quando faltavam apenas 3 dias para comemorarmos o nosso aniversário de um ano de casamento apenas religioso.

Foram necessários muitos anos, muita compreensão, aceitação e desprendimento para eu chegar a esse patamar de perdão, é bem verdade, mas com as bênçãos de Deus e muitos estudos no âmbito do espiritismo kardecista, pude perceber que nada nos acontece se não for pela vontade de Deus. A cada um de nós é dado o que nos foi estipulado que teríamos que passar. Hoje, com a consciência de que cumpri esse ciclo na minha vida, que ele se encerrou, tenho a paz de espírito e o coração liberto para dizer em palavras que não se apagam tão facilmente: sinto-me livre e em paz!

MoBa NePe Zinid – 13jan2024